A Arte de Recomeçar: Como Realizar Sonhos (Mesmo) Sem Disciplina

A Arte de Recomeçar: Como Realizar Sonhos (Mesmo) Sem Disciplina

Tempo de leitura: 13 minutos

Em 2024 este projeto completa 10 anos.

Inúmeras vezes me afastei dele e retornei. Foram muitos os recomeços.

Escrever na internet produziu os recursos financeiros e a liberdade geográfica com os quais pude realizar grande parte dos meus sonhos.

Viajei o mundo enquanto trabalhava: até agora, estive em mais de 25 países em 4 continentes.

Há 5 anos vivo na Tailândia, um país que, desde a minha primeira visita, em 2016, me fascinou: moro onde sonhei morar.

Esse projeto me permitiu fazer aquilo que, no meu Plano de Vida, descrevi como “o que é realmente importante para mim: a vida de estudos, a arte da escrita, a oração, a meditação, a conquista de uma excelente saúde e forma física, os prazeres honestos, a prática das virtudes”.

Por que, então, me afastei tantas vezes?

Por que abandonamos projetos e iniciativas que são importantes para nós?

Tenho uma resposta e vou compartilhá-la com você.

Meu objetivo com este artigo, porém, vai além de investigar as causas da nossa inconstância: quero propor uma “arte de recomeçar”.

Segundo Aristóteles (384 a.C. — 322 a.C.), uma arte surge quando “a partir de muitas noções da experiência forma-se um só juízo universal relativamente a objetos semelhantes”1.

Minhas experiências de recomeço são, portanto, o material que vou usar para formular essa arte da qual precisamos urgentemente.

O que é esta arte?

A arte de recomeçar é a arte de reintroduzir na nossa vida um elemento cuja presença é fundamental para nossa realização pessoal.

Por Que Precisamos de Uma “Arte de Recomeçar”?

Há em nós um misterioso fundo de preguiça que é para a natureza humana o mesmo que o peso é para os objetos: uma força que os “empurra para baixo”.

Temos certo horror do esforço, especialmente do esforço prolongado, e fazemos o possível para evitá-lo.

O que é isto que nos faz inconstantes?

O pedagogo francês Jules Payot (1859 — 1939) descreve esse fenômeno como “um estado de alma fundamental” e invencível:

(…) há (em nós) um estado de alma fundamental, de ação absolutamente contínua, e que se denomina indolência, apatia, preguiça, ociosidade. Renovar frequentes esforços é renovar essa luta contra esse estado natural, sem aliás obter contra ele uma vitória definitiva.2

A inconstância, portanto, é um elemento constitutivo da natureza humana. Somos inconstantes por natureza.

Podemos verificar a presença real inconstância natural se examinarmos o modo como contamos a nossa própria história e realizamos nossas operações mentais.

Nossa Forma (Ainda) Indefinida

Quem sou eu? Não sei. Mas sei o que não sou.

Não sou um produto final, um ente com uma forma definida e estática. Estou mudando e me fazendo neste exato momento: “Eu sou onde ajo”3.

Terei uma forma definida um dia, mas só após a minha morte.

A pergunta “quem sou eu?” pode nos induzir a procurar por um indivíduo cuja história possa ser contada com início, meio e fim.

“Quem foi Machado de Assis? Foi um grande escritor brasileiro”.

Machado de Assis tem uma forma fechada. Ele não está adicionando novos elementos à sua biografia. Eu estou. Nós estamos. Nossa história não terminou e não podemos nos conhecer como um personagem.

O autoconhecimento que busca conhecer a si mesmo como uma imagem a ser contemplada passivamente está tentando realizar o impossível.

Não temos forma definida. Somos um conjunto de elementos em movimento. Somos uma forma em formação.

O indivíduo que busca conhecer-se como uma forma fechada está, neste mesmo ato, cristalizando-se e anulando possibilidades que ainda poderia realizar.

Ele está, em certo sentido, morrendo antes de morrer.

Quem, diante de um convite à mudança, diz ”eu sou assim, não posso mudar” faz exatamente isso.

Ele acredita possuir uma forma fechada e, pior ainda, acredita conhecer essa forma. Está se enganando e se fazendo um grande mal.

Uma forma fechada é estática. Nela, todos os elementos e suas relações encontram-se definidos e não irão mudar. É o caso do nosso Machado.

No caso de uma vida humana em curso, porém, há indefinição e mudança. Há tensão e contradição.

Somos um conjunto de tendências, desejos, memórias, emoções, sentimentos e esperanças em constante movimento de ajuste e desajuste.

Conhecer-se é conhecer essas tensões e contradições, não contemplar uma imagem final e estática que será sempre falsa, já que mudará no momento seguinte.

Essa existência tensional em constante movimento de ajuste e desajuste é a razão da nossa inconsistência.

Nossa inconstância, portanto, não é um defeito.

Somos movimento e mudança. Somos uma atividade que ora triunfa, ora sucumbe.

Nossa Mente Fragmentária

Todas as nossas operações mentais são constituídas de fragmentos.

O que une esses fragmentos e os converte num todo coeso e unificado é o trabalho mental que realizamos sobre eles.

Se peço a você que me conte a sua história, você fará o trabalho mental de buscar e unir vários fragmentos de memória para compor uma narrativa que tenha sentido de continuidade.

Fazemos o mesmo ao montar um raciocínio: encadeamos várias proposições de acordo com suas conexões lógicas e formulamos uma conclusão.

Esse trabalho de unificação é uma criação. Criamos unidade a partir de fragmentos.

Criar, portanto, não é uma escolha, mas uma necessidade humana.

Através deste ato criador, o homem escapa à confusão e fornece à sua realidade fragmentária uma estrutura coesa na qual pode confiar para se orientar e agir.

Inconstância e recomeço permitem essa atividade criadora.

Ao abandonarmos um projeto importante, rompemos a unidade e coesão da nossa história pessoal.

Nos últimos 10 anos, tive essa experiência de rompimento inúmeras vezes.

Ao afastar-me deste projeto, a coesão da narrativa da minha história pessoal se rompia. Um “pedaço de mim” ficava faltando.

Surgia, então, a irresistível necessidade de realizar o ato criador capaz de restabelecer essa coesão: o ato de recomeço.

Recomeçar, portanto, é reconstruir o elo de continuidade da nossa história que foi rompido por nossa inconstância natural.

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As 3 Fases do Recomeço

Agora que compreendemos melhor as razões da nossa inconstância, podemos começar a formular uma arte de recomeçar.

No Ocidente, a narrativa-modelo de um recomeço é a narrativa bíblica do Êxodo.

Ela conta como os israelitas, guiados por Moisés, deixaram para trás a escravidão no Egito e viajaram através do deserto para chegar à Terra Prometida, onde puderam recomeçar suas vidas.

A estrutura desta estória está presente em praticamente qualquer narrativa de recomeço da literatura, do cinema e da nossa própria vida.

Qualquer recomeço, pessoal ou grupal, deve necessariamente passar por 3 fases:

  1. Fuga da Escravidão. A libertação daquilo que oprime, escraviza ou aliena.
  2. Peregrinação Pelo Deserto. O período de desafios e sofrimentos que deve ser superado através do sacrifício e do trabalho.
  3. Chegada à Terra Prometida. A conquista de um objetivo que é a recompensa pela superação das dificuldades enfrentadas.

Em O Senhor dos Anéis, por exemplo, Bilbo é libertado da escravidão do Um Anel (fuga), Frodo faz a longa e sofrida viagem até Mordor para destruí-lo (deserto) e, após cumprir sua missão, retorna ao Condado, símbolo da Terra Prometida (chegada).

O Êxodo é a narrativa-símbolo da experiência universal do recomeço.

A estrutura que identificamos nela também pode ser identificada nas nossas experiências pessoais.

O recomeço de uma carreira profissional após uma demissão é um excelente exemplo. O trabalhador precisa libertar-se de sentimentos de fracasso e rejeição que podem aprisioná-lo (fuga), realizar todo o trabalho de busca por uma nova oportunidade (deserto) e, enfim, conseguir um novo emprego (chegada).

O conjunto destas experiências pessoais são o material a partir do qual podemos elaborar uma arte do recomeço para nosso próprio uso.

Recomeçar consiste em vivenciar as 3 fases do Êxodo em diferentes contextos e realidades.

A estrutura ou fórmula de um recomeço (a forma, no sentido aristotélico) é sempre a mesma, já a realidade concreta na qual o recomeço acontece (a matéria, no sentido aristotélico) é diferente em cada caso.

Vejamos agora como as 3 fases acima costumam ser vivenciadas em nossos processos de recomeço.

1. A Fuga da Escravidão

Nada grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição. Sófocles

O excesso de opções é a escravidão moderna.

Um recomeço exige, em primeiro lugar, a fuga da escravidão do excesso e um retorno à simplicidade.

Onde estão as opções em excesso que escravizam você? (Um bom número delas está no seu smartphone.) Livre-se delas.

Paradoxalmente, oferecer a si mesmo opções simples e limitadas é uma excelente estratégia para ampliar nossa liberdade.

Os antigos e medievais tinham uma expressão para essa fuga da escravidão e retorno à simplicidade: desprezo do mundo (contemptus mundi).

Em última análise, “o mundo” é tudo o que nos afasta daquilo que é verdadeiramente importante.

Se as coisas “do mundo” (distrações, prazeres, entretenimentos e promessas) não estão servindo como meios para a conquista de bens superiores (a realização do seu propósito, por exemplo), então elas estão servindo como obstáculos.

O mundo é o grande escravizador.

2. O Combate no Deserto

O deserto é símbolo da vida interior, da luta pela sobrevivência e do combate espiritual.

No contexto do recomeço, ele representa o combate que devemos travar contra aquilo que nos afastou do nosso caminho ou projeto: chamo-os de elementos dispersantes ou alienantes.

Esses elementos incluem sentimentos, opiniões, preconceitos, preocupações, medos e desejos mal compreendidos.

O combate contra eles dá-se pelo trabalho de compreensão intelectual: dominar algo intelectualmente é superá-lo.

Muitos dos meus escritos foram produzidos para fornecer uma compreensão de inimigos comuns da humanidade: a inveja, o sentimento de inferioridade, a tristeza.

Escrevê-los foi um combate. O resultado deste combate, porém, foi extremamente benéfico para mim e para muitos dos meus leitores, clientes e alunos. Não lembro, por exemplo, quando foi a última vez que experimentei qualquer sentimento de inveja mais intenso. Meus estudos sobre o tema me curaram completamente.

Somos vítimas indefesas daquilo que não conhecemos e o sofrimento que somos incapazes de expressar age sobre nós com mais intensidade do que aquele sobre o qual somos capazes de falar.

Antes de recomeçar um projeto é importante identificar os elementos dispersantes que nos afastaram dele.

Esses elementos devem ser assumidos por nós como objetos de estudo. Devemos ler sobre eles, meditar sobre eles, escrever sobre eles. Devemos aprender o máximo sobre “nossos demônios”.

O estudo destes elementos os tornará menos opacos e mais translúcidos. O poder que possuem sobre nós irá diminuir proporcionalmente ao entendimento que temos deles.

Esse estudo deve prosseguir indefinidamente. Ele é para nós, no fim das contas, o mais proveitoso de todos os estudos.

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3. A Conquista da Terra Prometida

Nossa Terra Prometida é o trabalho que escolhemos fazer e que julgamos ser o trabalho que melhor podemos fazer.

Sempre que penso nesta “Terra Prometida pessoal” lembro do que escreveu Louis Lavelle (1883 — 1951):

O estado ao qual nossa vida inteira aspira e no qual gostaría­mos de nos estabelecer eternamente não é um estado de paz (…) nem um estado de fruição (…). É o estado de uma atividade alegre, desinteressada e inocente, fecunda e destituída de esforço, sempre radiosa e co­mungante.4.

Quais as características desta atividade alegre, fecunda e comungante?

Quando um iniciante joga contra um mestre, nenhum dos dois se diverte: o iniciante sente-se ansioso e o mestre sente-se entediado.

O que torna um jogo ou um trabalho gratificante é o ajuste perfeito entre o desafio da tarefa e as habilidades do jogador ou trabalhador. Quando isso acontece, o mundo silencia, o tempo é esquecido e entramos no estado psicológico a que se referiu Lavelle e que a psicologia positiva chama de flow.

O desafio proporcional às nossas habilidades é a fonte do contentamento.

Essa proporcionalidade acontece quando há equilíbrio e adequação entre dificuldade e habilidade. Quando isso acontece, não há ansiedade nem tédio, mas uma espécie de estado de graça.

O projeto que abandonamos e que sentimos que precisamos recomeçar é importante para nós exatamente porque tem esse equilíbrio que produz contentamento.

Quando estamos trabalhando nele, entramos no estado de uma atividade que desfruta de seu próprio exercício. Sinto-me assim agora mesmo, enquanto escrevo estas linhas.

O desejo de retornar a este estado é a força que nos pressiona interiormente e nos convida ao recomeço. Foi esse desejo que me fez recomeçar tantas vezes ao longo dos últimos 10 anos.

Hora de Recomeçar

Temos agora o esboço inicial de uma arte do recomeço. Podemos resumir o que aprendemos em alguns pontos:

  1. Somos inconstantes por natureza, não por defeito.
  2. Recomeçar, portanto, é (e sempre será) uma necessidade universal.
  3. Todo recomeço tem 3 etapas: a fuga, o deserto e a chegada.

Espero que esses esclarecimentos ajudem você a recomeçar algo importante: um projeto, um sonho, um negócio.

Se você precisar de ajuda para formular uma estratégia de recomeço, considere agendar uma consultoria comigo. Posso ajudar você pessoalmente.

Desejo o melhor para sua vida.

Notas de rodapé

  1. Aristóteles, Metafísica, Livro I.
  2. Jules Payot, A Educação da Vontade, 1ª edição, p. 23.
  3. Louis Lavelle, A Consciência de Si, 2014, p. 67.
  4. Louis Lavelle, A Consciência de Si, 2014, p. 87.