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Não nos contentamos com quem somos. Essa é uma realidade que cada um de nós pode constatar.
Há quem esteja satisfeito consigo mesmo? Certamente. Mas esse não parece ser o caso para a maioria das pessoas.
A visão das nossas limitações, sejam físicas, morais ou intelectuais, nos faz sofrer: nos sentimos diminuídos, menores, inferiores.
Convencionou-se chamar este sofrimento de sentimento de inferioridade.
A experiência deste sentimento é tão comum que Alfred Adler (1870 – 1937) fundamentou sua psicologia na ideia de que ser homem é viver atormentado por sentimentos de inferioridade.
Neste artigo, quero explorar com você este sentimento.
Vamos investigar seu significado e suas causas.
Nosso objetivo é compreender como o sentimento de inferioridade surge e se aprofunda — e, claro, como podemos vencê-lo.
Sumário
A Dialética do Sentimento de Inferioridade
Há o sentimento de inferioridade, mas há também algo que o acompanha e que devemos considerar.
Se temos a inegável experiência de um sentimento de inferioridade, temos também, ao mesmo tempo, um desejo de superação deste sentimento.
Este desejo é tão inegável quanto o próprio sentimento de inferioridade — e é tão presente quanto ele.
Como toda realidade interior, o que realmente existe é uma tensão entre dois pólos que encontram-se em perpétuo conflito: não nos contentamos com quem somos, mas queremos melhorar.
O sentimento de inferioridade, portanto, não é simplesmente um “sentir-se inferior”.
Ele é o resultado do conflito entre o muito que pretendemos ser e o pouco que, no momento, somos.
Nesse conflito, o pouco que somos está diante dos nossos olhos, enquanto o muito que pretendemos ser é apenas uma realidade potencial e imaginária.
Um está presente e o outro ausente.
Um age sobre nós agora, o outro é mero desejo e possibilidade.
Ora, é natural que aquilo que está mais próximo aja sobre nós com mais intensidade do que aquilo que está mais afastado.
É por essa razão que o sentimento de inferioridade facilmente triunfa, num primeiro momento, sobre nosso desejo de superação e crescimento.
Deste raciocínio podemos concluir que não há nada de intrinsecamente desordenado no sentimento de inferioridade.
Ele é algo que acontece simplesmente porque é “fácil” de acontecer.
Alguns de nós talvez até cheguem à conclusão de que seu surgimento é inevitável.
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Sentimento de Impotência e de Inferioridade
Essa “inevitabilidade” do sentimento de inferioridade vem também da superioridade numérica dos outros, isto é, daqueles com quem vivemos em sociedade e com os quais nos comparamos.
“Sou um e os outros são muitos” — e o conjunto das qualidades e das produções deles necessariamente superam as minhas.
O gênio Shakespeare (1564 – 1616), se vivesse neste século 21, certamente sentiria o peso do imenso volume das produções literárias do nosso tempo. Ainda que, consideradas individualmente, essas produções fossem de qualidade inferior às suas, a mera superioridade numérica o faria experimentar algum sentimento de inferioridade.
Há, portanto, um tipo de ação impessoal, anônima e coletiva que produz inevitavelmente em nós um sentimento de impotência por sua superioridade quantitativa.
Este sentimento de impotência é um precursor do de inferioridade, pois aniquila a esperança de conquistar aquilo que é visto como superior.
Quem não percebe em si a potência (ou poder) para a conquista do que está acima, verá necessariamente a si mesmo como estando abaixo.
O Problema do Sentimento
Antes de falarmos da inferioridade, falemos do sentimento.
O sentimento nunca fornece uma imagem fiel da realidade. Nunca expressa a verdade pura de um fato: é apenas um indicador de nossa reação a ele.
Diante de um mesmo fato, pessoas diferentes podem experimentar sentimentos muito diversos, às vezes radicalmente opostos. Essa é a prova de que o sentimento não serve como instrumento para compreender a qualidade ou natureza de um fato real.
O sentimento é uma expressão de nossa subjetividade. Está confinado nos limites do nosso ser e não alcança a realidade concreta.
A realidade é o que é independente do que pensamos ou sentimos. Tomar nossos sentimentos como critério para interpretação da realidade é sempre um erro.
Para conhecer o real é necessário passar do sentimento à percepção, isto é, ultrapassar a esfera do subjetivo para contemplar a realidade e deixar que ela mesma nos fale o que está acontecendo e o que está em jogo.
O desapego em relação aos nossos sentimentos é, como veremos adiante, um elemento importante para a superação do sentimento de inferioridade.
Inferioridade e Comparação
A noção de inferior implica comparação: uma coisa é inferior em relação a outra coisa.
Com o sentimento de inferioridade não é diferente: o “sentir-se abaixo” é necessariamente o resultado de uma comparação.
Não diremos, porém, que basta parar a comparação com os outros para que o sentimento de inferioridade desapareça.
Dizer tal coisa seria preguiçoso, falso e, no fim das contas, impossível.
A comparação com outras pessoas é, sem dúvida, algo necessário e inevitável. Conhecemos comparando, e comparar é avaliar semelhanças e diferenças.
É da própria natureza do nosso intelecto fazer distinções entre as coisas para melhor conhecê-las.
É pela comparação que a nossa inteligência opera.
Isso significa que, em si mesma, a comparação é boa, pois está na base do funcionamento da nossa inteligência.
A depender de como seja feita, porém, ela pode nos causar problemas.
Há, portanto, uma boa e uma má comparação.
A boa e a má comparação
Comparar é tomar consciência das diferenças ou distâncias entre dois objetos.
Comparar-se com outra pessoa é tomar consciência da distância que nos separa dela:
- Distância moral. O outro tem mais (ou menos) virtudes e boas qualidades.
- Distância física. O outro é mais (ou menos) forte ou belo.
- Distância intelectual. O outro é mais (ou menos) inteligente.
Mas a consciência desta distância precisa necessariamente causar em nós insegurança e tristeza?
Nada nos diz que é necessário que seja assim.
É certamente possível, se quisermos, que o nosso espírito apreenda esta distância e separação objetivamente.
Nada nos impede de não fazer julgamentos subjetivos e de não projetar sentimentos sobre as informações que obtemos através de uma comparação.
Essa seria a boa comparação.
Ela é realizada com “espírito científico”, isto é, com o único objetivo de obter informações que serão usadas para um fim útil.
Trata-se, sem dúvida, de uma operação espiritual delicada, mas não impossível.
A má comparação, por outro lado, introduz na consciência a tristeza.
Ela enxerga a superioridade do outro como uma declaração insultuosa de que somos inferiores.
É como se a superioridade alheia fosse uma ofensa.
Mais ainda, ela é má não apenas porque produz um estado emocional indesejado, mas também porque viola a própria natureza da consciência.
O papel da consciência não é causar insegurança e tristeza.
Seu papel é muito mais nobre: é iluminar e mostrar com clareza o que queremos conhecer.
O papel da consciência não é, como se pensa, produzir em nós insegurança e angústia; é, como o do sol, aclarar e purificar, e tranquilizar-nos. Louis Lavelle1
A consciência existe para ser instrumento na busca e conhecimento da verdade.
Quando cumpre seu verdadeiro papel, a consciência nos tranquiliza. Quando não o cumpre, nos perturba.
Se formos capazes de processar objetivamente as informações obtidas pela comparação de nós mesmos com os outros, poderemos nos livrar de dois males:
- A tristeza pela superioridade do outro.
- A soberba pela nossa superioridade.
“Diante da superioridade de outrem”, nos diz A.D. Sertillanges (1863 – 1948), “só resta uma atitude honrosa: amá-la”2.
Leia também: Inveja: Como Identificar, Superar e Proteger-se
A Tristeza Aprofundada
A tristeza produzida pela má comparação pode ser aprofundada por outra atitude: a fixação nas nossas insuficiências.
Tomar consciência da superioridade do outro é, ao mesmo tempo, tomar consciência dos nossos defeitos e fraquezas.
A contemplação destas limitações é, em si mesma, algo bom: conhecê-las é conhecer-nos de modo mais completo.
No entanto, sempre corremos o risco de, oprimidos pela visão dos nossos defeitos, nos centrarmos obsessivamente neles.
Se isso acontece, o indivíduo passa a enxergar-se como essencialmente inferior e defeituoso.
Esse modo de enxergar-se é, claro, completamente falso: a natureza não produz seres essencialmente defeituosos.
O defeito, chamado tecnicamente na ciência da Lógica de privação, é sempre acidental: os indivíduos têm defeitos, mas não podem ser defeitos.
É por falta de capacidade lógica e inteligência emocional que alguém fixa-se obsessivamente nos próprios defeitos.
Essa fixação promove uma mutação no sentimento de inferioridade, transformando-se naquilo que Alfred Adler chamou de complexo de inferioridade.
Leia também: 25 Atitudes Que Podem Estar Estragando Sua Vida
Do Sentimento de Inferioridade ao Pessimismo
O complexo de inferioridade é um pessimismo.
A insistência em alimentar sentimentos de inferioridade por meio da fixação voluntária nos próprios defeitos produz a falta de esperança.
O pessimista é um indivíduo que descartou a esperança.
Sua característica principal é a formulação de falsas relações de causa e efeito, que ele toma como verdadeiras:
A é a situação, portanto B é impossível.
Ele dirá:
Não tenho conhecimento suficiente, portanto não posso criar meu próprio negócio online.
Certa vez, depois de apresentar os bastidores do meu negócio para uma cliente, ela falou:
André, você é muito organizado. É impressionante que você consiga fazer tudo isso sozinho. Não sou tão disciplinada assim, eu desistiria no primeiro mês.
A relação de causa e efeito que ela formulou é falsa.
Talvez lhe faltasse disciplina, mas faltava-lhe, antes de tudo, disposição: faltava-lhe o desejo de combater sua indisciplina.
As falsas relações de causa e efeito formuladas pelo pessimista são desculpas.
Essas desculpas são expressas como relações de causa e efeito para serem mais facilmente aceitas como verdadeiras.
Ao formulá-las, o pessimista escolhe deixar de fora elementos que, sem dúvida, modificariam a conclusão de que ele não é capaz: sua coragem, determinação e boa vontade.
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A Superação do Sentimento de Inferioridade
Por que algumas pessoas sofrem terrivelmente sob o peso de suas limitações enquanto outras vivem normalmente e até consideram-se felizes?
A resposta encontra-se no querer: no exercício da liberdade e da capacidade de autodeterminação.
Em última análise, trata-se de uma escolha.
Algumas pessoas escolhem aceitar e até superar suas limitações, em vez de torná-las uma obsessão.
Escolhem agir segundo as leis da razão, pois reconhecem, por raciocínio ou intuição, que seus defeitos não podem determinar o que são.
Na prática, essas pessoas escolhem agir e viver em função de bens superiores:
- Um plano de vida bem projetado
- O bem de seus familiares e amigos
- Os ensinamentos da sua religião
- A busca da sabedoria, da bondade ou da força física
Elas saem de si e, de certo modo, esquecem-se. Orientam-se por princípios objetivos e exteriores.
Em vez de produzirem tristeza e pesar, suas insuficiências são convertidas num estímulo ao esforço e à superação.
Fixam-se no que desejam realizar ou alcançar — e fixam-se nessas coisas por livre escolha.
Leia também: Força de Vontade: Domine as Leis da Motivação e da Determinação
A superação pela teleologia
Falar em superação dos sentimentos de inferioridade pode ser impreciso.
O que propriamente acontece é a passagem para um modo de vida superior.
O indivíduo escolhe, livremente, um novo ponto de concentração focal de suas energias.
Alfred Adler chamou de teleologia este impulso humano para a livre escolha de suas metas e propósitos:
Cada indivíduo age e sofre de acordo com sua teleologia peculiar, que tem toda a inevitabilidade do destino, enquanto não a compreenda.
A superação é, na verdade, um “saltar por cima” dos sentimentos de inferioridade ou dos problemas criados pela fixação nestes sentimentos.
É um tipo de substituição, que acontece, na prática, pela eleição de um objetivo de vida.
Este novo objetivo é concreto, exterior e, em alguns casos, visível.
Algumas pessoas escolhem, por exemplo, o desenvolvimento físico como o objetivo que os liberta da fixação nas próprias limitações.
Outras escolhem o caminho intelectual, aprimorando sua capacidade de pensar e ampliando o seu horizonte de consciência através do estudo3.
As limitações continuam existindo (e podem até diminuir com o tempo) mas o foco do indivíduo agora é positivo: fazer algo em vez de viver para contemplar suas misérias.
Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) talvez nos dissesse que esse é um ato de uma virtude chamada magnanimidade ou grandeza da alma.
A Alma Grande
Aristóteles nos ensina que o homem magnânimo “é incapaz de fazer com que sua vida gire em torno de um outro”4.
Ora, isso é o que faz aquele que, uma e outra vez, realiza a má comparação que já comentamos.
Aristóteles também nos diz que este homem de alma grande “não ambiciona as coisas que são vulgarmente acatadas, nem aquelas em que outros já ocupam a primeira posição”.
Vemos aqui, com clareza, que o complexo de inferioridade é consequência de uma “pequenez de alma”.
Nela, o indivíduo fecha-se em si mesmo para contemplar seus defeitos e sofrer.
Escolhe uma existência diminuída.
Não vamos explorar aqui as razões que teria para fazer essa escolha. Isso nos levaria para longe do nosso objetivo.
O que queremos é descobrir como fazer a outra opção e escolher, em vez da “alma pequena”, a alma grande, a magna anima.
A Coragem é a Resposta
Sentir-se inferior é sentir que nos falta algo.
É também sentir, ao mesmo tempo, o desejo de compensar essa falta.
A maneira mais saudável e produtiva de alcançar essa compensação é, sem dúvida, crescer.
É tornar-nos maior do que aquilo que, em nós, é menor ou inferior.
É, em suma, buscar o largamento da alma.
Para isso, exige-se a disposição de lutar.
Para lutar, exige-se a virtude cardeal da coragem, também chamada de fortaleza.
Pessoalmente, gosto de outra palavra: audácia.
A resposta, portanto, é essa: ter coragem.
Todo o itinerário que fizemos até aqui nos faz chegar nesta conclusão.
Desejo o melhor para sua vida.
Notas de rodapé
- Louis Lavelle, Regras da Vida Cotidiana, 2011, p. 24.
- A.D. Sertillanges, A Vida Intelectual, 2014, p. 15.
- Machado de Assis é um ótimo exemplo. Sendo pobre e com pouca educação formal, lutou para alcançar a ascensão social (e certamente para superar algum sentimento de inferioridade) aprimorando-se intelectualmente.
- Aristóteles trata da virtude da magnanimidade na Ética a Nicômaco, Livro IV, Capítulo 3.